Wednesday, November 18, 2009

Odisseia de Um Brazuca em Luanda - Parte V

Nas ruas de Luanda, direitos e deveres são negociados caso a caso, no calor do momento, e quem tem carro maior e mais caro tende a ter mais direitos do que têm os motoristas dos veículos mais modestos. E o que não falta são enormes Hummers, Range Rovers e Land Cruisers tentando afirmar o seu poder. A julgar pela frota nas ruas é difícil imaginar que e expectativa de vida não passa de 43 anos, uma criança em quatro morre antes dos 5 anos e que mais de 50% da população esteja desempregada. A lógica dominante é uma combinação explosiva de laissez-faire com cada um por si, muito mais seleção natural que filosofia política. Onde antes se buscou Marx hoje se encontra Darwin.

 
No topo dessa cadeia alimentar está o presidente e seu grupo de aliados. Apesar de toda a aparência democrática que o governo tenta dar ao país, criticar abertamente quem está no poder ainda pode trazer conseqüências desagradáveis. A maioria das pessoas que entrevistei se mostrou reticente em falar abertamente até eu prometer não usar seus nomes. Mesmo assim são poucos os que decidem abrir suas opiniões para um desconhecido. Um dos que o fez, e de forma bem didática, foi um bem-sucedido empresário com quem almocei. "Angola mudou de sistema econômico sem mudar de governo, de presidente ou de partido. A iniciativa de mudança tem sido do poder e não da sociedade. O governo é extremamente capitalista, mas no capitalismo deles eles próprios são os principais acionistas, não o povo. A estratificação social que existe em Angola foi feita pelo poder político. Agora é que se fala de classe média, classe baixa, classe alta. Antes a única classe era quem estava no poder. Estrangeiros não têm a memória de Angola. Há uma herança autoritária que é forte, e essa herança justifica o medo."

Apesar do boom econômico, os edifícios novos e os enormes carros congestionando as ruas são seus únicos sinais visíveis. Pequenos e médios negócios como lojas, restaurantes e prestadores de serviços, motores de uma economia saudável e includente, ainda são raros em Luanda. Os esforços econômicos do governo privilegiam grandes negócios, que normalmente só conseguem prosperar com um sócio angolano bem relacionado no governo. Para os médios e pequenos a vida ainda é muito difícil. Fora o petróleo, o setor da economia que mais cresce é o bancário, com 18 bancos surgindo nos últimos cinco anos, introduzindo pela primeira vez na vida do país comodidades como contas bancárias, cheques, caixas eletrônicos, compras financiadas e, novidade das novidades, cartões de crédito. Não surpreende a ninguém que a Sonangol tenha expressiva participação acionária em todos eles.

Comprar coisa em loja é uma novidade que só agora se está tentando implementar em Angola. O único shopping de Luanda é o Bellas, que a brasileira Odebrecht acaba de construir em Luanda Sul, um lugar tão árido e sem vida que entediaria até um habitante de uma típica cidade soviética na Sibéria. Para o angolano médio não existe comércio, mas sim negócio. A não ser quando se vai aos grandes mercados da cidade, muitas vezes atrás de produtos para serem revendidos, geralmente são os produtos que vão até você, e não o contrário. Angola é a apoteose do sacoleiro.

O verdadeiro dinamismo da economia angolana está no setor informal, em que Angola é mais Angola e menos uma pretensão de primeiro mundo. Ali o capitalismo é verdadeiramente competitivo e saudavelmente selvagem. Nos grandes mercados públicos da cidade, a maioria com nome de novelas e programas de TV brasileiros, como Roque Santeiro e os Trapalhões, se encontra praticamente de tudo. O Roque Santeiro é o principal deles. "Se não se encontra no Roque, ainda não foi inventado", garante Pepetela, um dos principais escritores angolanos, em um de seus livros.

Em um único mercado se encontra de prego a sexo, passando por motos coreanas, perfumes franceses, uísques escoceses, roupas do Brás (trazendo a última moda da novela das 8), música angolana, filmes indianos, eletrodomésticos chineses, peixes do Atlântico, carne de Huambo, celulares finlandeses, quinquilharias do mundo inteiro e iPhones desbloqueados. Tudo ordeiramente organizado por setor.

Também é nos mercados que se pode consumir o principal produto cultural de angola: o kuduro, ritmo local, e o rap, feitos nos musseques, as favelas angolanas.

Angola tem uma importante produção cultural que já está se espalhando pelo mundo. Escritores como José Eduardo Agualusa e Ondjaki já estão entre os principais nomes da literatura de língua portuguesa e sendo traduzidos em vários países. Na última Bienalle em Veneza, o país teve, pela primeira vez, uma participação elogiada no pavilhão africano e Luanda já tem sua trienal de artes plásticas, cuja segunda edição será realizada em 2010, possivelmente já numa sede própria desenhada por Oscar Niemeyer, com curadoria, como a primeira, de Fernando Alvim, um dos mais destacados artistas plásticos angolanos. Mas essa produção pode ser mais facilmente apreciada no exterior do que em Luanda, onde a cena cultural ainda é extremamente limitada.

A verdadeira efervescência cultural em Angola está nos musseques, onde se vara a noite em raves de kuduro, bebendo cerveja Eka e dançando enlouquecidamente até o Sol nascer. O kuduro lembra um pouco o funk carioca, com letras praticamente recitadas de forma acelerada sobre bases simples, mas de ritmo forte, só que trazendo narrativas menos agressivas, mais crônicas sociais cheias de humor do que exaltações de sexo e violência. Por muito tempo relegado aos CD players dos candongueiros (a verdadeira rede de rádio popular de Angola) e bancas de CDs dos mercados angolanos, o ritmo recentemente começou a virar mainstream, com o governo se animando a promovê-lo como "o ritmo nacional", pegando carona com o sucesso que o kuduro já começa a fazer em algumas pistas da Europa.

A crítica social mais pesada fica a cargo do rap, esse ainda maldito, mas tornado poderosa arma política não partidária na voz de Mc K, um tranqüilo e simpático estudante de filosofia que mora num dos musseques mais perigosos de Luanda. Rodando a cidade em alto volume nos alto-falantes dos candongueiros, sua voz consegue romper a polarizada linha que divide as simpatias políticas dos angolanos entre MPLA e UNITA e atingir fundo a todos com uma crítica precisa e afiada não dos partidos, mas do sistema sufocante que se perpetua independentemente de quem esteja no governo. Suas letras incomodam tanto o poder que um fã foi assassinado por um integrante da guarda presidencial simplesmente por cantar uma de suas músicas.

Apesar de todos os problemas, anos de sofrimento parecem terem feito dos angolanos irremediáveis otimistas. Sem dúvida para eles a maior conquista foi a chegada da paz. É grande o número de jovens bem formados que estão abandonando bons empregos na Europa e Estados Unidos, para onde foram para escapar dos anos de conflito, retornando ao país em busca de aproveitar o bom momento e ajudar a fazê-lo andar para a frente.


Continua...

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